Dicionário bilíngue busca resgatar e preservar língua do povo Huni Kuī no Acre

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Em meio ao risco de desaparecimento das línguas indígenas no Brasil, uma iniciativa pioneira conduzida pelo linguista e indígena Joaquim Maná, do povo Huni Kuī, vem chamando a atenção pelo impacto cultural e educacional. Natural de Tarauacá, Joaquim lançou o dicionário Hãtxa Kena Xarabu, obra bilíngue que reúne vocabulário, músicas, histórias, grafismos e saberes tradicionais da etnia — um esforço para manter viva a língua nativa.

Com doutorado em Linguística e décadas de atuação como professor e pesquisador, Joaquim percorreu os 12 territórios e 130 comunidades do povo Huni Kuī, distribuídos em cinco municípios do Acre: Jordão, Tarauacá, Feijó, Marechal Thaumaturgo e Santa Rosa do Purus. A população estimada do povo é de 17 mil pessoas.

“Muitos territórios já não estavam mais ensinando a língua às crianças. Isso me preocupou profundamente”, afirmou Joaquim.

O dicionário é resultado de um trabalho coletivo que valoriza a oralidade e o conhecimento ancestral. Anciãos, contadores de histórias e cantores tradicionais contribuíram para o levantamento de nomes de animais, plantas, expressões e canções. Joaquim destaca que o processo respeitou o tempo e o saber de cada colaborador, em uma escuta cuidadosa.

Além do dicionário, o projeto inclui cartilhas de alfabetização, livros de músicas e registros gráficos. O objetivo é transformar esses materiais em ferramentas pedagógicas nas escolas indígenas.

Educação como espaço de resistência

Para Joaquim, a escola indígena precisa ultrapassar o ensino tradicional da língua portuguesa e incorporar as línguas nativas como eixo central do currículo. Ele defende uma educação bilíngue e intercultural, como determina a Constituição Federal, mas que, segundo ele, ainda não se concretizou na prática.

“Por que não ensinar o que é nosso com o mesmo valor que se ensina matemática ou geografia?”, questiona.

O linguista critica a ausência de investimentos específicos para a valorização das línguas originárias. Ele cobra do poder público programas contínuos, com equipe técnica e orçamento adequado, para garantir que essas línguas sobrevivam.

Línguas ameaçadas

No Acre, segundo Joaquim, dos 16 povos indígenas existentes, apenas sete mantêm falantes fluentes da língua. Em cinco etnias, apenas os mais velhos conhecem o idioma, e quatro vivem em um estágio de esquecimento parcial, com memórias fragmentadas.

“Quando uma língua morre, morre junto uma forma de ver o mundo”, resume.

O dicionário Hãtxa Kena Xarabu visa romper esse ciclo. Além de ensinar a falar, a obra permite que as novas gerações aprendam a ler e escrever a língua, reforçando sua prática cotidiana.

Inspiração para outros povos

O impacto da obra já é sentido entre os jovens Huni Kuī. Joaquim relata que muitos estudantes se emocionaram ao ver no papel aquilo que ouviam dos avós. A escrita fortaleceu também a fala, despertando orgulho e pertencimento.

Apesar do avanço, a publicação em larga escala ainda é um desafio. O material existe, mas falta apoio institucional para distribuição nas escolas e comunidades.

“Nossa esperança é que essa experiência sirva de exemplo. Que outros povos possam fazer o mesmo: registrar suas línguas, ensinar suas crianças, preservar suas raízes”, conclui Joaquim.

Redação Semear Notícias

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